Sou Lucio, fotógrafo. Feliz por quem me tornei, pois encontrei propósito no que eu faço. E não se trata apenas de fazer retratos.
Por conta do meu passado, ser o que sou dá mais significado.
Empunhar a câmera, pra mim, traz mais profundidade. É o ato de mirar alguém e enxergar identidade.
É ir além da superficialidade dos olhos.
É a magnificência de um clique capaz de mirar corpos e extrair a essência. Revelar o natural e suas singularidades.
Apaixonado por gente, sou um apreciador de estilos de vida em família. Observo, descubro particularidades e qualidades que dão tom a uma narrativa diferente.
Permito que transbordem. Através da lente, gosto de contar histórias. Eternizo todas elas como imagens que vivem seguras no papel e não no campo da memória, como reféns vulneráveis ao esquecimento.
Sou um viajante do mundo, mas também de mundos – o que, em algum momento, me dá o poder de embarcar pessoas em uma viagem no tempo.
Permitir que as pessoas revisitem o melhor de si e de suas histórias foi o jeito que a vida arranjou de me devolver uma oportunidade perdida. Não fui colecionador das memórias fotográficas de um referencial da minha infância e, com isso, sentia que eu havia me
desconectado da melhor parte de mim.
Participar da realização dessas pessoas foi o elo que encontrei para reconectar quem eu sou hoje, com a melhor parte do que eu vivi no passado e do que eu desejava viver.
Sou emigrante brasileiro, imigrante no Japão. Um cara de bem com a vida, de prosa solta e riso fácil, que encontrou na fotografia o amor e a vocação. Mas o que me deu sentido nela tem a ver com quem eu era; desde os tempos de criança.
Eu era o neto de Kaoru, ou dona Rosa, para a maioria.
Uma senhora com o carisma típico de avó, saúde e disposição de uma jovem e a força e a determinação de uma legítima japonesa – que ninguém contestaria.
Morávamos no Brasil e, embora me faltasse uma estrutura familiar nos moldes ideais, meu abrigo era o coração dela. Era de lá que vinha o maior amor que eu recebia.
Era uma exceção à regra. Aos 80 anos fazia caminhada e freqüentava academia.
Tinha uma memória rara; sempre me contava como foi ser uma imigrante na década de 20 e lembrava os detalhes da minha infância.
O registro da história da minha vida percorrida até então, desde minhas raízes familiares, era ela, com razão. Sua bravura e lucidez eram tamanhas, que geraram uma ilusão de que meu maior acervo e referência de amor em pessoa viveria para sempre. Tudo estava seguro, aparentemente.
Aos 26 anos, juntei a cara e a coragem, 500 dólares no bolso e, junto à minha (então) esposa, tomei uma decisão: deixar pra trás as dificuldades – financeiras e familiares – traçar novo destino e tentar a vida no Japão.
Ao me despedir da batian (como chamamos as avós em japonês), ela me encorajou: “Você vai lá e vai vencer. Muitos conseguem, por que meu neto não conseguiria?”.
E isso já faz 12 anos. Com o apoio dela eu fui. Fui, mas, sem saber que aquela seria a última conversa com ela lúcida que eu teria.
O Japão foi o meu refúgio, mas não foi a calmaria. Me deu oportunidade, deu emprego e belas paisagens, que me inseriam aos pouquinhos no hobby da fotografia.
Por outro lado, incessantemente me lembrava de que era um país sem muito calor humano, que exige trabalho árduo de 70 horas por semana, muita pressão e que tem altos índices de pessoas com depressão.
E eu, que vivia só pra isso, sem desempenhar algo que tivesse algum significado pra mim, entrei pra tal estatística clínica nacional. O cara conhecido por seu bom humor contagiante havia perdido sua alegria de viver e, de quebra, a esposa; veja você.
Anos mais tarde, quando consegui algum dinheiro para voltar ao Brasil e visitar a batian – pois soube pela minha mãe que ela não estava bem – tamanha foi a surpresa – e minha maior tristeza – ao vê-la me perguntar quem eu era.
O mundo virou do avesso. Como aquela mulher incrível pôde ficar assim? O Alzheimer havia levado as lembranças de minha avó e começava a roubá-la de mim.
Lembrei que eu não tinha fotos dela e tratei de tirarmos uma, assim que refleti o impacto da perda, fosse anunciada ou repentina.
Mas ela já não era mais a mesma, o olhar estava vazio, como se sua história tivesse sido apagada de sua retina.
Essa foi a primeira vez que senti o baque do que significava não ter a própria história contada em um álbum. Feito de momento e não de poses. Que retratasse um pouco do nosso dia a dia, que me levasse de algum modo pra mais perto dela e de quem eu gostava de ser, com ela. Foi a primeira vez que senti o peso de “se acomodar”, de achar que as pessoas estarão sempre ali e que temos todo o tempo do mundo à nossa espera.
Voltei para o Japão. Eram tempos difíceis. Sem luz e cor.
Mas assim como o outono que perde as folhas pra renascer na primavera, eu sabia que já chegava a hora para eu me reencontrar, dar um sentido pra vida, ressignificar.
Fiz algumas viagens incríveis e resolvi mergulhar no que até então era só um hobby. Me dediquei tanto à fotografia que quando percebi, ela já havia virado parte de mim.
Dois anos após o último encontro, a batian partiu. E com isso já se foram 4 anos. Ela teve uma vida bonita, inspiradora, o que faz eu me alegrar.
Mas, uma dor com o passar do tempo ainda aumenta de forma insistente toda vez que eu tento me lembrar das expressões de minha avó ao me contar histórias e constato que isso não gera mais nenhuma imagem na minha mente.
A memória é vulnerável; traz lampejos, alguns flashes, mas não preserva os detalhes.
Por tudo isso, decidi ser fotógrafo e me especializar em fotografia de família. Porque entendo a necessidade de manter raízes vivas. Porque me ligo às experiências que tive e não pude registrar, mas que exatamente por isso me causam uma enorme satisfação ao ver pessoas diante dessa chance, sabendo aproveitar.
Decidi porque vivo com elas também o que não tive quando menino e desejei viver: a solidez familiar. Quero me emocionar junto e retratar essa emoção contando suas histórias, para que um dia os seus netos possam lembrar e recontar.
N. Lenarf